...E um dia virá, sim, um dia virá em mim a capacidade tão
vermelha e afirmativa quanto clara e suave, um dia o que eu
fizer será cegamente seguramente inconscientemente,
pisando em mim, na minha verdade, tão integralmente
lançada no que fizer que serei incapaz de falar, sobretudo um
dia virá em que todo meu movimento será criação,
nascimento, eu romperei todos os nãos que existem dentro de
mim, provarei a mim mesma que nada há a temer, que tudo o
que eu for será sempre onde haja uma mulher com meu
princípio, erguerei dentro de mim o que sou um dia, a um
gesto meu minhas vagas se levantarão poderosas, água pura
submergindo a dúvida, a consciência, eu serei forte como a
alma de um animal e quando eu falar serão palavras não
pensadas e lentas, não levemente sentidas, não cheias de
vontade de humanidade, não o passado corroendo o futuro! o
que eu disser soará fatal e inteiro! não haverá nenhum
espaço dentro de mim para eu saber que existe o tempo, os
homens, as dimensões, não haverá nenhum espaço dentro de
mim para notar sequer que estarei criando instante por
instante, não instante por instante: sempre fundido, porque
então viverei, só então viverei maior do que na infância, serei
brutal e malfeita como uma pedra, serei leve e vaga como o
que se sente e não se entende, me ultrapassarei em ondas,
ah, Deus, e que tudo venha e caia sobre mim, até a
incompreensão de mim mesma em certos momentos brancos
porque basta me cumprir e então nada impedirá meu
caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou
descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo.
Clarice Lipector